A noite na América do Sul pulsa com uma vida secreta, e entre seus gigantes mais emblemáticos está a anta brasileira (Tapirus terrestris). Este animal extraordinário, com seu corpo robusto, tromba flexível e ar de sabedoria ancestral, sempre exerceu um fascínio profundo sobre mim, Nelson Portes. Para além de seu papel crucial como “jardineira das florestas”, dispersando sementes e moldando a paisagem, a anta possui uma vida social e comunicativa complexa, especialmente durante o período de acasalamento. Registrar esses momentos íntimos, essa sinfonia de interações que se desenrola sob o manto da lua, tornou-se uma das minhas buscas mais desafiadoras e gratificantes como fotógrafo de vida selvagem noturna.
Lembro-me das primeiras vezes que me dediquei a entender os chamados e os rastros das antas. Seus assobios agudos, que cortam o silêncio da noite, são uma forma de comunicação a longa distância, um código que pode indicar desde um simples contato até o anúncio de um encontro reprodutivo. Seguir esses sons, interpretar as marcações de cheiro deixadas em trilhas e margens de rios, e posicionar-se discretamente para testemunhar seus rituais é uma imersão profunda no mundo sensorial desses gigantes gentis. Não se trata apenas de técnica fotográfica; é sobre paciência, respeito e uma conexão quase espiritual com a floresta e seus habitantes.
Neste artigo, quero compartilhar com vocês a jornada de tentar decifrar e registrar a comunicação e os rituais de acasalamento das antas brasileiras. Quero transportá-los para as noites úmidas da Amazônia, para os campos alagados do Pantanal e para os refúgios da Mata Atlântica, onde esses magníficos animais perpetuam sua espécie através de uma dança complexa de sinais, sons e encontros. Preparem-se para ouvir os sussurros e os chamados da noite, e para vislumbrar a intimidade de um dos mais impressionantes herbívoros do nosso continente.
A Linguagem Secreta das Antas: Vocalizações e Marcações Olfativas
A comunicação entre as antas é multifacetada, envolvendo uma combinação de vocalizações, marcações olfativas e posturas corporais. Os assobios agudos e penetrantes são talvez os sons mais característicos e audíveis a longas distâncias. Já passei noites inteiras em claro, em um esconderijo próximo a um barreiro ou uma trilha frequentada, apenas ouvindo esses chamados ecoarem pela floresta, tentando discernir se eram de machos buscando fêmeas, fêmeas receptivas ou interações entre mãe e filhote. Cada assobio parece carregar uma intenção, uma mensagem sutil que ainda estamos aprendendo a decifrar.
Além dos assobios, as antas produzem outros sons, como estalidos, bufos e grunhidos, geralmente em interações mais próximas. Durante o cortejo, por exemplo, esses sons podem se intensificar, acompanhados de comportamentos específicos. Mas a comunicação olfativa é igualmente, se não mais, crucial. As antas possuem glândulas odoríferas bem desenvolvidas e utilizam a urina e as fezes para marcar território e sinalizar seu estado reprodutivo. Machos costumam borrifar urina em arbustos e troncos ao longo de suas trilhas, deixando um cartão de visitas químico para outros indivíduos. Fêmeas no cio também liberam feromônios que atraem os machos, transformando a floresta em um mapa de mensagens olfativas.
Para mim, como fotógrafo, entender essa linguagem invisível é fundamental. Observar onde as marcações de cheiro são mais frequentes pode indicar áreas de alta atividade e potenciais locais de encontro. Lembro-me de uma vez no Pantanal, seguindo um macho que parava a cada poucos metros para cheirar o solo e borrifar urina. Sua concentração era total, e seus movimentos, embora lentos, eram carregados de propósito. Capturar essa intensidade, essa imersão do animal em seu mundo de odores e sons, é um dos meus objetivos ao fotografar a comunicação das antas.
O Cortejo Sob as Estrelas: Rituais de Acasalamento
O período de acasalamento das antas é um momento de intensa atividade e interações complexas. Embora sejam animais geralmente solitários, machos e fêmeas se encontram para a reprodução, e o cortejo pode durar vários dias. O macho geralmente persegue a fêmea, emitindo vocalizações e tentando se aproximar. A fêmea, por sua vez, pode se mostrar receptiva ou inicialmente arredia, testando a persistência e a condição do macho.
Já tive o privilégio de testemunhar fragmentos desses rituais. Lembro-me de uma noite enluarada na Amazônia, onde um casal de antas circulava em uma clareira próxima a um igarapé. O macho seguia a fêmea de perto, roçando seu corpo no dela, enquanto ambos emitiam assobios suaves. Havia uma tensão no ar, uma mistura de excitação e cautela. A água, muitas vezes, desempenha um papel importante no cortejo e no acasalamento das antas. Elas são excelentes nadadoras e frequentemente buscam refúgio ou realizam parte do ritual dentro d’água, o que adiciona um elemento visual e um desafio extra para a fotografia.
Fotografar o acasalamento em si é extremamente raro e requer uma combinação de sorte, paciência e um profundo conhecimento dos hábitos locais da espécie. A discrição é absoluta; qualquer perturbação pode interromper o comportamento. Utilizo teleobjetivas longas, iluminação mínima e aproveito ao máximo a luz ambiente, como o luar ou a luz das estrelas filtrada pela copa das árvores. O objetivo não é apenas registrar o ato, mas capturar a atmosfera, a conexão entre os animais e a beleza selvagem do momento.
Desafios Fotográficos: Paciência, Escuridão e Gigantes Discretos
Fotografar antas à noite, especialmente durante seus rituais de comunicação e acasalamento, é uma empreitada repleta de desafios. Sua natureza predominantemente noturna e seus hábitos discretos, apesar do tamanho, exigem uma dedicação imensa. A escuridão é o primeiro grande obstáculo, demandando equipamentos com bom desempenho em ISO alto e um domínio das técnicas de iluminação artificial sutil. Como sempre, priorizo flashes remotos, difusos e em baixa potência, para não estressar os animais nem criar um visual artificial.
As antas são extremamente sensíveis a odores e sons. Qualquer cheiro estranho (repelente, perfume, fumaça) ou ruído (equipamento, passos descuidados) pode alertá-las e fazê-las desaparecer na vegetação densa. Isso significa que a escolha do local para o esconderijo, a direção do vento e o silêncio absoluto são cruciais. Muitas vezes, passo noites inteiras sem avistar nada, apenas ouvindo os sons da floresta e esperando. A paciência não é apenas uma virtude; é uma necessidade.
O tamanho das antas também apresenta um desafio logístico. Embora sejam grandes, elas se movem com uma surpreendente agilidade e silêncio na vegetação fechada. Antecipar seus movimentos e conseguir um enquadramento limpo, que mostre o animal em seu contexto sem que a vegetação o obstrua demais, requer prática e um bom conhecimento do terreno. E, claro, há sempre a questão da segurança, tanto para o fotógrafo quanto para o animal. Encontros muito próximos com um animal desse porte, mesmo que não seja agressivo, exigem cautela e respeito aos seus limites.
A Importância da Anta: Jardineira das Florestas e Símbolo de Conservação
Além da beleza de seus rituais íntimos, é fundamental lembrar o papel ecológico vital da anta brasileira. Conhecida como a “jardineira das florestas”, ela é uma das principais dispersoras de sementes em nossos biomas. Ao se alimentar de uma grande variedade de frutos, ela ingere as sementes e as transporta por longas distâncias, depositando-as em novas áreas através de suas fezes, o que é essencial para a manutenção da diversidade e da estrutura das florestas tropicais.
Infelizmente, a anta enfrenta sérias ameaças, como a perda e fragmentação de habitat devido ao desmatamento, a caça ilegal e os atropelamentos em rodovias. Sua baixa taxa reprodutiva torna as populações ainda mais vulneráveis a esses impactos. Minhas fotografias, ao revelarem a beleza e a complexidade da vida das antas, buscam também sensibilizar para a urgência de sua conservação. Mostrar seus comportamentos naturais, sua importância para o ecossistema e os desafios que enfrentam é uma forma de conectar as pessoas emocionalmente a essa espécie e inspirar ações para protegê-la.
Cada imagem de uma anta em seu ambiente natural, seja comunicando-se através de um assobio ao luar, marcando seu território ou engajada nos delicados rituais de acasalamento, é um testemunho da riqueza da vida selvagem que ainda possuímos e da responsabilidade que temos em preservá-la. Que a sinfonia noturna das antas continue a ecoar por nossas florestas, um lembrete constante da magia e da importância da natureza intocada.
Um Legado de Assobios e Rastros: Celebrando a Vida Secreta da Anta
Minhas noites na companhia sonora e, por vezes, visual das antas brasileiras me ensinaram muito sobre a resiliência da natureza e sobre a beleza que se esconde na simplicidade de um assobio ou na complexidade de um ritual ancestral. Registrar a comunicação e o acasalamento desses gigantes gentis é mais do que uma paixão fotográfica; é uma forma de honrar sua existência e de advogar por sua sobrevivência.
Que as histórias e imagens compartilhadas aqui inspirem um novo olhar sobre a anta, não apenas como um animal exótico, mas como um ser senciente com uma vida social rica, um elo vital em nossos ecossistemas e um símbolo da biodiversidade que precisamos proteger com urgência. Que os chamados das antas continuem a preencher as noites da América do Sul, e que tenhamos a sabedoria de ouvir e garantir que essa sinfonia ancestral perdure por muitas e muitas gerações.